Porsche 924: a injusta reputação de um conceito que redefiniu a marca
O 924 é um dos melhores exemplos do quão poderoso é o alcance do chamado “word-of-mouth”. Só que neste caso, para mal da Porsche e desgosto dos seus fãs, a mensagem passada ao longo dos anos, quando o tema é o 924, nem sempre é a mais justa. Muitas vezes apelidado de “Porsche dos pobres” ou o tal que “tinha motor Volkswagen”, o 924 é tão somente um dos carros mais importantes da história da marca, principalmente pelo pioneirismo do conceito que lhe serve de base e que rompeu com a habitual disposição “tudo atrás” dos carros com o símbolo de Estugarda.
Lançado originalmente em 1976, o Porsche 924 foi um automóvel inovador pela arrumação da sua mecânica em configuração transaxle, com motor na frente e caixa de velocidades sobre o eixo traseiro, apontando a um superior equilíbrio dinâmico. Este design foi igualmente adoptado pelos 944, 968 e 928, saindo de cena em 1995, depois de quase 400 mil unidades transaxle produzidas. O projecto do 924 – que chegou a ser o desportivo mais vendido do mundo – começou em 1972, sob a designação EA 425, pela mão do criativo Harm Lagaaij, o jovem designer a quem este trabalho encomendado pela Volkswagen foi entregue.
No entanto, motivada pela crise energética de 1974, a Volkswagen decidiu abandonar a ideia no final desse mesmo ano. Isto apesar do EA 475 estar praticamente pronto a entrar em produção. A Porsche decidiu, então, comprar os direitos daquele projecto e lançou-o no mercado, dois anos depois, como o 924. E para aqueles que questionam a originalidade e personalidade puramente Porsche do 924, Lagaaij tem também a resposta: o pedido veio da Volkswagen, mas o sucesso veio com a Porsche e isso só demonstra a qualidade do conceito original e do design completamente diferente daquilo a que a Porsche estava habituada.
Tal como Lagaaij, também na Garagem somos fãs do Porsche 924 e em especial deste que hoje vos apresentamos, propriedade de um bom amigo da casa e que no-lo disponibilizou para realizarmos este trabalho, partilhando igualmente a sua história e ligação ao primeiro modelo da família transaxle da Porsche. Obrigado, Pedro, pelo tempo e conhecimento partilhados, bem como pela ajuda a repor a verdade sobre um dos mais icónicos desportivos das últimas décadas.
Chega-te à frente, Pedro. Fala-nos um pouco de ti e do teu gosto por automóveis.
Chamo-me Pedro Anjos, tenho 34 anos e formei-me em engenharia mecânica, movido pelo gosto por máquinas que tenho desde sempre, sejam eles automóveis, comboios, etc.. Os carros, em particular, são algo pelo qual sempre tive uma grande paixão e isso veio a reflectir-se numa boa colecção de miniaturas, revistas e livros.
Porquê um Porsche 924?
O gosto pela marca Porsche é algo de que me recordo desde que “sou gente” e sempre esteve presente na família através da paixão por carros que o meu Pai e eu partilhamos. Esse gosto pôde, felizmente, ser satisfeito, dado o que meu Pai foi, numa determinada época, proprietário de dois 911. Sempre apreciei os vários modelos da marca e a família transaxle sempre me fascinou de igual modo que o afamado 911.
O 924 tem um desenho puro e estilizado que sempre apreciei muito e a verdade é que, a título de curiosidade, lembro-me de, há talvez 25 anos, quando eu era apenas um garoto, ficar louco pelo namoro platónico que o meu Pai teve por um lindíssimo 924 Turbo verde metalizado de dois tons. Regressando ao passado recente, a compra do 924 deveu-se a um impulso curioso. Como sabes estive emigrado em Espanha durante 7 anos e durante esse período levei comigo o meu outro clássico, deixando em Portugal o meu carro de uso diário que era um Mazda MX-3. Nessa altura lançaram as novas normativas anti-poluição no centro da cidade e apercebi-me que o Mazda já não podia desempenhar o papel pretendido que era, essencialmente, o de carro de passeio quando vinha para uns dias de visita. A solução para o problema foi comprar um outro clássico que, desde que devidamente homologado, passa a poder circular livremente pelo centro da cidade.
Ao iniciar a pesquisa por um clássico, sensato, robusto, entusiasmante e ainda acessível de adquirir e manter, foi com emoção que entendi que podia ter isto tudo no Porsche 924, um modelo da marca que toda a vida adorei. O gosto pelo modelo em causa rapidamente se tornou numa paixão, assim que me iniciei na sua procura. Estávamos no início de 2015 e imediatamente se transformou num amor certo quando este exemplar foi encontrado.
Como o descobriste e que trabalho tiveste de fazer nele?
Foi o meu Pai que me deu todo o apoio em campo, digamos, dado que eu estava a viver em Espanha. Após ver alguns modelos anunciados em diferentes sites de venda de automóveis, demos de caras com este exemplar que apresentava, além de um excelente aspecto e quilometragem correcta, um extra que valorizo imenso que é o ar condicionado. Fez-se uma viagem até Avintes para testar o carro e este convenceu-nos em todos os sentidos. Ficou imediatamente decidido!
Após a aquisição, foi feita uma revisão geral normal, com mudança de distribuição e recarga de gás do ar condicionado. Aproveitei, igualmente, para substituir o silenciador final e os apoios de motor, bem como para lhe colocar uns amortecedores da Koni. Para além disso, instalei ainda uma barra de torção traseira para melhorar o desempenho em curva.
Em 2018 fez-se uma revisão geral do sistema de injecção com substituição de alguns componentes que acusavam já o peso da idade, revisão ao compressor do ar condicionado e também do circuito de refrigeração. Naquela altura, devido aos quase 160 mil quilómetros que já marcava e também pela sua natural tendência para desgaste precoce, decidi substituir a árvore de cames e as respectivas touches hidráulicas. Desde então tem sido uma questão de dar-lhe uso e desfrutar de belos quilómetros ao volante.
Tens algum cuidado especial com a sua manutenção? É fácil encontrar peças?
A manutenção é absolutamente normal, tal como num qualquer outro carro convencional. Logicamente, com os seus maduros 37 anos de idade, de vez em quando lá surge algum pormenor que requer mais atenção mas a realidade é que é um clássico robusto e que não dá muitas dores de cabeça. Ao nível de disponibilidade de peças, é verdade que não é excepcional.
Curiosamente, contra as crenças comuns, não são muitos os componentes partilhados com o grupo Volkswagen. Isto cria um problema dado que apesar de ter sido um modelo de enorme sucesso comercial para a Porsche, caiu no esquecimento e esteve um pouco abandonado pela marca. Actualmente, alguns componentes importantes são na verdade bastante difíceis de encontrar. Felizmente, graças à comunidade de adeptos e a um crescente apreço pelo modelo e consequente procura pelos adeptos de carros clássicos em geral, existem várias peças que voltaram a ser produzidas pela marca.
Que utilização lhe dás?
Praticamente todos os fins-de-semana pego nele e dou uma “voltinha higiénica” como gosto de lhe chamar. Não gosto de deixar os carros parados durante longos períodos de tempo. Para além disso, sempre que surge a oportunidade de fazer um programa de fim-de-semana que convide a um bom passeio de clássico ou a algum evento automóvel para assistir, é com prazer que o tiro da garagem.
Fala-nos um pouco de como é conduzir o 924.
Como é? É uma delícia! Na minha oponião, é um carro que convida sobretudo a uma condução do tipo gran turismo, de aproveitar a surpreendente disponibilidade do motor 2,0 lt, levando-o com dinamismo até às 3000 rpm em cada mudança e conduzindo com o braço na janela enquanto se ouve uma boa música “old school” no auto-rádio Blaupunkt da época. E claro, sempre acompanhado pelo som grave e rouco do motor ajudado pelo silenciador Dansk. É um carro bem construído e isso sente-se bem ao volante, ao filtrar bem as irregularidades do pavimento com uma quase ausência de ruídos parasitas.
Para além disso é um carro que, quando queremos conduzir de forma realmente dinâmica, dá um imenso gozo e surpreende, tal e qual aquela avozinha que arregaça a saia e lança-se numa corrida desenfreada. No final de contas, digam o que disserem, 125 cavalos num tracção traseira com 1030 kg é receita mais que suficiente para nos deixar com um sorriso na cara. Do meu ponto de vista, muitas vezes, ter menos é ter, na verdade, mais e nisto o 924 é um exemplo perfeito. Não é preciso ter muitas centenas de cavalos para se desfrutar e, na realidade, a questão é: o que é que se faz com 300 ou 400 cv na vida real, numa estrada normal?
A caixa, a frio, é pouco colaboradora, mas uma vez aquecido o óleo, é suave, precisa e com um curso curto. O equilíbrio do carro é absolutamente fascinante graças, principalmente, à configuração transaxle, dando a sensação de que o eixo de rotação do carro, a meio de uma curva, está centrado precisamente no condutor. Os níveis de aderência são surpreendentes tendo em conta as medidas dos pneus que calça (185/60 R 14), mas ao mesmo tempo tem aquele doce e previsível comportamento no limite que julgo que se perdeu com os pneus de perfil reduzido.
A direcção é precisa e tem muito bom feeling, assim como um sistema de travagem de características técnicas discretas mas competente e mais que suficiente para o peso do carro, mesmo durante uma utilização mais espirituosa em estrada, digamos. Por muito que tente fazer uma análise imparcial, julgo que é impossível disfarçar o quanto adoro o 924.
Sei que tens outro clássico, como também referiste, e é algo completamente diferente.
É verdade. O carro no qual aprendi a conduzir com 16 anos e que espero manter toda a vida. Um Lancia Delta Integrale 8v de 1988. É uma máquina fabulosa, fiel companheiro desde sempre, com muitas histórias boas vividas ao volante. Muitas dessas histórias partilhadas contigo a bordo dado que a nossa amizade remonta praticamente à mesma época em que o Lancia entrou na minha vida. Das aventuras mais recentes destaco umas quantas viagens ida/volta Lisboa-Barcelona nestes últimos anos. Aliás, devo acrescentar que o 924 também passou por essas mesmas aventuras e a verdade é que cada um, à sua maneira, são estradistas exímios.
O Lancia é um carro, logicamente, muito diferente e onde somos claramente arrastados para uma espiral que nos leva conduzir com dinamismo para tirar total partido dele e constatar a razão pela qual é um automóvel mítico e marcante. Como experiência de proprietário posso dizer que é o oposto do Porsche ou seja, pode ser conduzido como “gentleman driver” e até é um hatchback que permite transportar com certa normalidade quatro pessoas e as suas bagagens, mas, na realidade, brilha e percebe-se a sua razão de ser quando é conduzido de forma dinâmica de modo a explorar toda a engenharia e sangue italiano que lhe corre nas veias. Julgo que poucos são os carros que dão tanto prazer a explorar as suas capacidades e que transpiram o espírito de competição deste modo.
Quais os carros que, caso pudesses, adicionarias à tua dupla dos anos 1980?
Nesta questão, diria que o meu coração fica dividido. Por um lado, adoraria ter um clássico contemporâneo dos anos 1970/80, algo com carácter mas com dimensão que permita ser usufruído em família e com uma motorização que seja interessante mas sem ser necessariamente a versão de topo do respectivo modelo. Existem imensos candidatos a esse lugar, uns mais sensatos, outros mais exóticos. Algo como estes: BMW 3.0si, Série 5 E12 ou E28, Mercedes-Benz W123 Coupé, Lancia Flaminia Coupé, Lancia Thema, Rover P6, Rover SD1. Enfim, seria muito difícil escolher apenas um.
Por outro lado, o que gostaria mesmo de ter são três carros que pertenceram à minha família e pelos quais tenho uma paixão enorme: o Vauxhall Cresta PA, o MG Metro Turbo e o Range Rover V8 da primeira geração. Se fosse capaz de recuperar precisamente as unidades que foram nossas, isso então seria ouro sobre azul. Caso tivesse disponibilidade financeira para isso, sem dúvida que esse seria o grande projecto a realizar. Nunca me sentiria tentado a investir imenso dinheiro num modelo em particular, daqueles que provavelmente viu o seu valor disparar devido às pessoas que começaram a vê-los como um investimento, privando muitos reais apreciadores de automóveis da oportunidade de possuir um. Carros assim são para ser conduzidos. Estimados, obviamente, mas conduzidos.
Fotos: Pedro Francisco