“Autocarro da TRAFFIC”: O pioneiro das motorhomes lusas
Há motorhomes para todos os gostos e diferentes orçamentos, que vão de simples espaços de convívio, a zonas mais in para recepção de convidados, assumindo-se outras como autênticos hubs híper-tecnológicos e multi-configuráveis, fazendo inveja a muita empresa, tais são os conteúdos que encerram. Na maioria dos casos, operam em apoio à logística dos diferentes teams de motorsport, nas suas deslocações para os múltiplos encontros do planeta. Mas, antes da tendência quase narcisista de que “a minha é mais tech do que a tua”, houve exemplares que se tornaram referências mundiais, como o inédito autocarro de dois andares da TRAFFIC.
Sim, hoje o herói da Garagem é este portento do final dos anos 80 do século passado, um ex-exemplar da Carris que acabou nas corridas de automóveis, levando consigo uma mesa de matraquilhos, uma máquina de cerveja à pressão e o associado frigorífico e até um barbecue, entre outros itens, para que a equipa pudesse mimar os seus convidados, em cada encontro! Foi um conceito imaginado por Artur Lemos, à altura Director de RP & Motorsports da TRAFFIC, marca de sportswear da região de Rio Tinto, que então apostava no desporto automóvel de uma forma inédita para a época.
Profissional que, ao longo da sua vasta carreira, esteve sempre envolvido na grande maioria das iniciativas, muitas delas ímpares e que enriqueceram o desporto automóvel nacional, e inspirado pelo que se fazia lá por fora, nomeadamente no Europeu de Carros de Turismo, o multifacetado profissional teve uma daquelas ideias out of the box: desenvolver uma das primeiras motorhomes dignas desse nome do nosso país, naquele que ficou sobejamente conhecido – pelo menos para os mais antigos nestas lides – como o “Autocarro da TRAFFIC”!
“Não me recordo se foi em 1987 ou já em 1988 mas, o facto é que – modéstia à parte – foi das mais brilhantes ideias que me passaram pela cabeça,” confidenciou-nos Artur Lemos, hoje no papel de freelancer e, desde há pouco mais de um mês, responsável pelo lançamento no Facebook do projecto/grupo “Histórias das Corridas” (ver abaixo). “Começámos por usar um furgão IVECO da fábrica nos fins-de-semana de corridas como viatura de apoio ao que hoje se poderia chamar – dadas as distância temporais – de ‘Paddock VIP’. Levávamos umas quantas mesas, cadeiras e guarda-sóis que montávamos nos paddocks das pistas e rampas, ali servindo e entretendo os amigos e convidados que iam ver o Pedro Meireles – o responsável da empresa e, também, conceituado piloto – dar ‘show’ com o seu lindíssimo Rover 3500, ao mesmo tempo que desfrutavam de um ‘catering’ que integrava as melhores iguarias das regiões, alguns da pastelaria ’Concha d’Ouro’, que ficava por debaixo de minha casa”.
“Seguiu-se um Ford Cargo devidamente alterado, com alcatifa, uma escada lateral e decorado, preparado para dar continuidade aos mimos aos nossos convidados, passando a servir cerveja à pressão, no que foi um enorme sucesso, e tendo uma máquina de café expresso, igualmente muito bem recebida, complementando a restante oferta gastronómica”, explicou o nosso entrevistado. “Estávamos quase lá mas, como era – e ainda é… – meu hábito, não estava completamente satisfeito! Faltava algo de mais especial…”.
A ideia viria a surgir dias mais tarde, quando “me apresento frente ao Pedro com uma ideia para uma solução ideal, acessível em termos financeiros e que seria um verdadeiro ‘golpe’ promocional da TRAFFIC: comprarmos um autocarro de dois andares! Passada a perplexidade inicial e depois apresentado o resultado de alguns telefonemas para as entidades envolvidas, apresentei-me com uma proposta na mão para a compra à Carris de uma unidade, daquelas tipicamente british, de volante à esquerda, semelhante aos que serviam, na altura, a cidade de Lisboa. Íamos, finalmente, ter a nossa primeira e verdadeira ‘motorhome’!”
Uma viagem para casa atribulada, numa (quase) versão cabriolet
Identificado o autocarro – um Leyland AEC Routemaster, de 1954, cuja matrícula o nosso interlocutor não se recorda – e fechado o negócio por um valor também hoje esquecido, foram buscá-lo à Ajuda, em Lisboa, às instalações da Carris, dando início a um processo no mínimo atribulado. “Estava em muito bom estado e tinha o motor revisto, pelo que lembro-me ter sido um bom negócio. Assim, socorremo-nos de um colega que tinha carta de pesados, mas que nunca tinha guiado um autocarro de dois andares, mas, há sempre uma primeira vez para tudo, como se viria a provar”, contou Artur Lemos.
Iniciada a viagem para Rio Tinto, a mesma sofria um revés logo à saída de Lisboa, na Av. de Ceuta, sob uma ponte onde, por cima, passa a linha do comboio. “Todo contente na sua estreia ao volante do ‘double deck bus’, o condutor esqueceu-se que o ‘bicho’ era grande e alto, acabando por torna-lo ‘descapotável’ em quase metade do piso superior”, obrigando, logo depois, a uma operação que envolveu uma escolta policial especial, pois o autocarro teria que voltar para trás, pela mesma via. “Vá que a dita ponte nada sofreu, pelo que o estrago foi só no nosso autocarro”.
Já na fábrica e reconstruído o tejadilho, operaram-se as restantes transformações, levando uma pintura geral com as cores da TRAFFIC e a inclusão da publicidade dos sponsors, na altura já a Ford e a Shell, que complementavam o logo da marca no entretanto adquirido Ford Sierra RS500, a brutal nova máquina com que Pedro Meireles e, também, Ni Amorim, lutavam pelas vitórias no Nacional de Velocidade, enquanto no interior removeu-se grande parte dos bancos do piso de baixo, dotando-se o espaço com uma mini-cozinha de apoio, com mobiliário e um frigorífico, para além do dispensador de cerveja, equipamento que, natural e necessariamente, transitou da anterior viatura!
Ostentando o vermelho e branco dos seus novos donos, em detrimento do anterior verde seco da transportadora alfacinha, o enorme e agora bem mais visível “Autocarro da TRAFFIC” ficava, assim, pronto para iniciar as suas conquistas. A começar por um regresso a Lisboa, para uma estreia que se viria a fazer no Autódromo do Estoril. Só que…!
“Eish!!! Não cabe!!!”
“Eis que senão quando, deparamo-nos com novo contratempo, quando na entrada para o ‘paddock’ do Estoril, que se faz sob um túnel que passava por debaixo da recta da meta, na altura bem mais estreito e baixo do que o actual , onde o autocarro não cabia”, partilhou o então RP da casa, mas, vá que desta vez o double decker parou antes do potencial novo estrago.
“A diferença era mínima, pelo que fizemos uns ‘cálculos científicos’, a ‘olhómetro’, chegando-se à conclusão que… bastava esvaziar os pneus quase na totalidade, atravessar o túnel muitíssimo devagar e voltar a enche-los do outro lado. Tanto trabalho para andar 20 metros! Mas resultou e o ‘monstro vermelho’ foi ocupar o seu devido lugar no ‘paddock’, com vista para a recta interior”.
A partir de então, o autocarro “88” passou a ser presença assídua na grande maioria dos eventos de velocidade nacional, corridos em circuitos como Vila Real (das imagens que ilustram este texto) e no original traçado do Autódromo, até provas de subida cronometrada, da saudosa Rampa da Pena à Régua, entre outros pontos do nosso Portugal, acompanhando os convidados a aproveitar as delícias do anfitrião – que também dava (e ainda dá) uns toques gastronómicos, sendo célebre o seu ‘Arroz de Enchidos’ – tudo acompanhado da bela da jola à pressão. “A TRAFFIC tinha, finalmente, a sua ‘motorhome’ de luxo, dando nas vistas como se pretendia, e com as comodidades exigidas. Aliás, até começou a ter um ‘catering’ mais refinado, servido pelo Sr. Horácio Silva, pelo que o ‘Autocarro da TRAFFIC’ tornou-se num ponto de encontro obrigatório nos diferentes ‘paddocks’ e foi um sucesso que nos dias de hoje nos deixa saudades”, acrescentou.
Ah sim, aquela foi a última vez que o autocarro passou no túnel pois, a partir daí, o enorme double decker vermelho e branco passou a ter um acesso quase exclusivo à infraestrutura desenhada na base da Serra de Sintra, passando a entrar pelas traseiras do circuito, num portão que existia na antiga zona dos ‘SSS’, seguindo depois pela pista em sentido contrário até à recta interior, para aceder ao paddock por um portão de emergência que então ali se abria.
As memoráveis e intermináveis “Histórias das Corridas”
Esta é apenas uma das já quase 500 histórias que, desde 1 de Maio, têm sido partilhadas no Facebook, no grupo “Histórias das Corridas”, plataforma de que Artur Lemos é criador e responsável pela sua gestão de conteúdos.
Crescendo, a cada dia, exponencialmente em número de contadores de aventuras – já tem quase 4.000 seguidores, parte deles estrangeiros, de algum modo ligados ao desporto automóvel nacional – e em conteúdos, grande parte relatados na primeira pessoa pelos intervenientes ou familiares e amigos dos mesmos, gerando inúmeros “Gostos”, num interesse que acompanha essa escalada ascendente, tal é o espectro de temas abrangido. E há tanto já ali contado, das histórias mais pequeninas, passadas aqui e ali, até a fantásticas curiosidades até agora desconhecidas da grande maioria, num grupo que partilha fotos e vídeos intemporais e/ou inéditos, formatos que, até à data, estavam guardados em baús agora reabertos, a bem da memória colectiva!
Voltando ao gigantesco herói desta prosa, “não imagino o que é feito desse fantástico autocarro, que merecia um local de destaque em qualquer museu”, concluiu o nosso entrevistado, a quem agradecemos a paciência e disponibilidade em (re)contar esta história e ceder-nos os materiais de suporte.
Se alguém, eventualmente, souber do seu paradeiro, partilhe connosco essa informação no Facebook da Garagem ou no chat/messenger daquele Grupo, para que o mesmo possa matar algumas saudades e, quem sabe, reeditar um dos seus famosos churrascos!
Fotos: Histórias das Corridas / Artur Lemos, Carris