Professor Karma, o homem que conduzia de olhos vendados
Há uns dias surgiu numa conversa familiar um tal senhor de seu nome Professor Karma, cujo feito maior teria sido o de conduzir de Lisboa ao Algarve de olhos vendados. Ainda que tal me parecesse exagerado, bastaram as palavras “conduzir” e “olhos vendados” para me ter rendido totalmente a essa narrativa. Aliás, bastaria, até, a palavra “professor” a adjectivar o senhor Karma, para saber que vinha dali coisa boa, e nem era preciso vir escrito num pequeno pedaço de papel preso no limpa pára-brisas a dizer que resolvia isto e aquilo. Pus-me, então, a fazer o que fazem os jornalistas, embora não me classifique, de todo, como tal. Felizmente, hoje em dia, com o acesso que temos à tecnologia e informação, bastou procurar na Internet para dar de caras com vários artigos sobre o tal Professor Karma. Alguns repetiam muito informação, é certo, mas decidi aprofundar um pouco mais a “investigação”.
Não pretendo fazer um desses outros artigos que se repetem, mas, antes, uma crónica que, partindo da fabulosa – e perigosa – premissa de conduzir de olhos vendados (epá, rio-me sempre que penso que isto aconteceu mesmo!) desvende um pouco sobre quem era o Professor Karma. Para começar, o nome. Ai, o nome!
Tudo começou quando este senhor nasceu, no já longínquo ano de 1928, no dia 12 do mês de Março, na maravilhosa Nazaré, terra de gente humilde, trabalhadora e honesta, e também deste senhor. O nome que lhe foi dado pelos pais, figuras respeitadas na localidade, foi o de Raul Januário Júnior. Confesso, eu também mudaria para Professor Karma. Ainda muito jovem, partiu para Lisboa para trabalhar nos CTT. Foi em Lisboa que começou os primeiros passos no mundo do entretenimento, em particular no circo. Eu sei que os nossos correios são uma palhaçada, mas daí a achar que só por se trabalhar lá temos credenciais circenses, já é estar a achar-se, na minha opinião.
Mas lá vai ele, o pequeno Raul, trabalhador dos correios, começar a investir na sua carreira artística. Mas como? – perguntam vocês. Como palhaço, claro! Então não se estava a ver? Eu já tinha dado a dica. E que nome escolheu o pequeno Raul para a sua persona palhaçal? Um nome que faria, já, adivinhar, a criatividade do nome Karma? Não. Escolheu Raulito, claro! Todos sabemos que nome de palhaço tem de ser, obrigatoriamente, o diminutivo do próprio nome. Outros bons nomes de palhaços conhecidos são, por exemplo, Venturinha, Riozito, Tavaresinho, Freititas, entre outros. Segue, então, o Raulito, a sua carreira nos CTT e no circo. Redundante, eu sei, mas continuemos.
Chegando ao início da década de 50, decide abandonar o seu número de palhaço e cria, finalmente, o Professor Karma. Professor do quê, concretamente? Pois. A verdade é que começa a ganhar alguma tração com os seus números de mentalismo teatral, e chega, até, a tornar-se o primeiro português a vencer um prémio internacional de magia, em Barcelona, e, embora essa informação careça de fontes, dentro do espírito deste artigo, vou aceitar.
O que é que isto tem a ver com carros? Tudo, mas já lá vamos.
Continuou os seus espectáculos no circo, mas depois, já na década de 60, começa a fazer, de forma regular, os seus números de mentalismo em restaurantes. No extinto Chicote, por exemplo, na Praça do Areeiro. Esta ideia é, ainda hoje, algo normal, pois Portugal é profícuo na criação de mentalistas e podemos assistir aos espectáculos de mentalismo de João Blümel ou de Leandro Morgado no Hotel Maxim ou no Canto, do José Avillez (isto há já alguns meses, atenção).
Creio que é a altura de salientar que o mentalismo é uma arte altamente interessante e que, feita da forma correcta, é das coisas mais espantosas de se assistir. O que me parece ser completamente o oposto de conduzir de olhos vendados! Em sua defesa, muitos ilusionistas, entre eles Houdini e, da nossa época, David Blaine, são conhecidos por ultrapassarem o que seria humanamente possível e de fazerem algumas façanhas que nos deixam os nervos à flor da pele.
Deve ter sido isso que aconteceu naquela manhã de Domingo de 1964 (não faço a mínima ideia se foi de manhã, mas dá aquele efeito fixe). Juntaram-se centenas de pessoas – mais uma vez, não faço a mínima ideia – para ver o feito promovido pelo dono do restaurante Chicote. Um golpe publicitário levado um pouco longe demais, eu diria. Conduzir, de olhos vendados, da Praça Duque de Saldanha até à Praça do Areeiro. Um percurso de, aproximadamente, 2 quilómetros. Não só são 2 quilómetros, como são 2 quilómetros a mais do que seria razoável. Mas lá foi ele. Ao que parece, correu tudo bem, porque o homem só morreu em 2001, e duvido que a viagem tenha demorado tanto tempo.
O carro utilizado, cedido pela Auto-Portuguesa, foi um Steyr-Puch Haflinger, descapotável, uma verdadeira carripana todo-o-terreno. O equivalente, à época, de uma verdadeira porcaria de carro. 600 quilos daquilo que se poderia chamar de SUV, mas em pior. Um todo-o-terreno ligeiro, capaz de transportar algumas tralhas militares, por exemplo, e mentalistas com desejos de morte. Lá foi ele, todo vendado, a conduzir. Isto parece difícil de acreditar, mas eu decidi escavar mais fundo e fui dar com um vídeo do arquivo da RTP de um programa de TV chamado “O Karma do Professor Karma”, de autoria e apresentação, lá está, do Professor Karma. A dada altura, no meio de muitas histórias de diagnósticos feitos a olho e de muito cheiro a álcool, que até se sentia pelo ecrã, aparece o Professor Karma a conduzir – opá, tu queres ver? – nem mais! De olhos vendados. Ah, “granda” homem! Grande performence! Palmas! A prova de que o homem conduziu, efectivamente, de olhos vendados. O facto de apenas se ver cerca de um minuto, dentro do carro, numa zona que me parece um caminho de terra batida no monte não invalida nada a possibilidade dele o ter feito a atravessar uma capital europeia na década de 60.
Não cheguei a saber se ele teria, ou não, ido de Lisboa ao Algarve a conduzir de olhos vendados, mas para mim vai ficar para sempre o facto de o ter feito, pelo menos uma vez, em registo. Apelidado um dos grandes ilusionistas portugueses, é talvez o primeiro e mais fantástico “proezista” nacional. De propósito ou fruto de uma certa ilusão própria, a verdade é que ficou para a história. Grande Professor Karma, o homem que, entre muitas coisas, hipnotizava galinhas.
Fontes e fotografias: Internet/Jornal i/ Jornal Tribuna de Macau/Arquivo RTP/RTP