Estoril Classics 2022 e os Fórmula 1 de outras eras
Num fim-de-semana pleno de flashbacks mais ou menos impactantes, houve uma categoria que me fez relembrar épocas da minha vida em que abandonava tudo o que estivesse a fazer – a brincar, na praia, a almoçar, com amigos ou até mesmo a dormir – para me sentar em frente à TV e absorver todas aquelas grandes lutas nos diferentes circuitos do circo da F1. Embora com outros contornos, a F1 regressou agora ao Autódromo, à boleia do Estoril Classics 2022 e se os nomes dos pilotos envolvidos nas novas batalhas são (quase) desconhecidos para a maioria, os monolugares e as suas cores tinham muito para dizer a muitos dos que, como eu, ali se deslumbraram ao longo dos três dias do evento.
OK, foram duas corridas e cada uma delas com apenas 20 minutos de duração, isto após um treino livre e uma única sessão de qualificação, igualmente diminutas, mas há que ter em conta que algumas dos bólides de F1 presentes tinham 50 anos em cima, aliás, tantos quanto o também meio centenário do próprio Autódromo do Estoril, festejado em Junho último.
Mas nem por isso quem ali se deslocou no segundo fim-de-semana de Outubro deu o tempo por mal empregue, muito em especial os que, por terem comprado um bilhete de paddock, puderam ver, tocar e até cheirar in loco as essências da Fórmula 1 de outros tempos. As boxes do nosso mais antigo circuito permanente ainda em utilização albergavam as chamadas “máquinas grandes” deste evento internacional idealizado pela Peter Auto e implementado em Portugal com o apoio da Race Ready, do Automóvel Club de Portugal (ACP) e da Associação de Turismo de Cascais, reunindo 17 monolugares, inscritos na categoria Classic GP – Pre-1986 F1, abarcando um amplo período temporal, de 1971 a 1986, e com tecnologias díspares, mais (in)visíveis ao nível aerodinâmico.
Os exemplares mais antigos eram os dois Surtees, um T59 de 1971 e um TS14 de 1972, seguidos de um quase desconhecido Trojan T103 e de um Embassy Lola T370, ambos usados nas temporadas de 1974 da F1, monolugares que, entre outros detalhes, se destacavam pelas enormes entradas de ar verticais, tipo periscópio, atrás da cabeça dos pilotos, solução que, entre outros, servia para arrefecimento dos conjuntos mecânicos. Também dos anos ‘70 mas já sem essa impactante solução, na sequência da descida em altura das entradas de ar, passando para os flancos dos monolugares, estiveram no Estoril um Lotus 78 de 1977, um Theodore TR1 de 1978 e um Ligier JS 11/15-4 de 1979. Todos à excepção do último, integravam a chamada Classe A, com o monolugar francês, por questões regulamentares, já se ver incluído na Classe B.
Era nesta que também estavam os restantes F1, todos do triénio 1981-83, era em que a aerodinâmica já apostava nos chamados fundos planos, ao contrário das anteriores soluções que estavam dotadas de fundos com os chamados “efeitos de solo”. Vindos do Mundial de 1981 estiveram em liça um March 811, um Ensign MN181-B e um Lotus 87B – este seria o grande dominador do fim-de-semana – sendo da época seguinte um Alfa Romeo 182B, um Arrows A5, um March 821 e um Lotus 91, num lote que se fechava com dois Williams, um FW07B e outro FW08C, mais um Ligier JS-21, todos concorrentes de 1983.
Se a abrangência de construtores de chassis era, digamos, simpática em número, em termos de motores, a variedade não era tanta, numa quase hegemonia das diferentes evoluções do bloco Ford Cosworth DFV V8, sendo a única excepção o V12 Alfa Romeo que alimentava o 128B. Quanto a cilindradas, eram todos 3,0 litros.
A era de ouro das tabaqueiras na F1
“Bem fixes aqueles fórmulas pretos e dourados”, ouvi de um jovem em pé na repleta Bancada A, falando com um amigo, que de imediato abanou a cabeça em concordância, isto quando os F1 terminavam a primeira volta da corrida de Domingo. E como não gostar deste visual John Player Special que, no início dos anos ’70, contribuiu para uma brutal mudança de imagem da modalidade e da própria publicidade no mundo do motorsport?
Com letras douradas sobre um fundo preto, a composição desta marca da Imperial Tobacco é das mais icónicas e inesquecíveis da dita modalidade rainha do desporto automóvel. Foi no final dos anos ’60 que a vertente comercial começou a ganhar mais força neste universo, levando a que os grandes patrocinadores começassem a surgir na F1, incluindo os gigantes das tabaqueiras, muito por culpa do visionário Colin Chapman e do seu Team Lotus!
Foi a 12 de Maio de 1968 que tudo mudou, data em que a formação de Chapman estreou o vermelho e dourado dos cigarros Gold Leaf, após acordo com a mesma Imperial Tobacco – fala-se num montante de 85.000 libras, à altura um valor considerável – tornando-se na primeira equipa de F1 a contar com um verdadeiro grande patrocinador na categoria.
Nada mais seria igual a partir desse GP de Espanha registando-se, quatro anos depois, nova evolução no próprio Team Lotus, quando em 1972 estreou as cores da John Player Special – simplificada para JPS – com os Lotus 72 a servir de tela para a inspiradora criação gráfica de Barry Foley. Ficava, assim, para trás toda uma era em que muitos F1 adoptavam elementos identificativos das bandeiras dos países de origem das suas equipas, da base verde seco para as britânicas, ao branco ou cinza para as alemãs, vermelho para as italianas e azul para as francesas, outras havendo que fluíam fora desse standard.
Com cinco vitórias, dois segundos lugares e um terceiro, entre outros resultados em 12 GP, Emerson Fittipaldi somava pontos suficientes para chamar seu o troféu de Campeão de Pilotos e dava ao Team Lotus o ceptro de Construtores, numa associação que se prolongaria até ao final da temporada de 1986, derradeira aplicação vista nas carroçarias dos Lotus 98T de Ayrton Senna (5º no final dessa época, com 2 vitórias) e Johnny Dumfries (13º), ano em que a equipa alcançava o 3º lugar dos Construtores. Pelo caminho, a JPS somou mais um campeonato de Pilotos, com Mário Andretti em ’78, e mais dois de Construtores, em ‘73 e ’78. Para além dos nomes acima, também Elio de Angelis, Nigel Mansell e Ronnie Peterson defenderam estas intemporais cores.
Se não os podes vencer, junta-te a eles
Fruto deste sábio provérbio, muitas das grandes outras equipas do pelotão da F1 viriam, depois, a firmar acordos semelhantes com tabaqueiras com a Marlboro (marca do grupo Philip Morris), Gitanes (na altura detida pela SEITA, monopólio de tabaco do estado francês, hoje parte da Imperial Tobacco), Rothmans (outrora produtora britânica autónoma, hoje detida por uma entidade canadiana) e Camel (da R. J. Reynolds Tobacco Co,), entre outras assinaturas gráficas, tornando os seus monolugares tão identificativos que era impossível não saber de que equipa se tratava, só pelas composições que ostentavam.
Seguiu-se uma época em que as regulamentações de saúde de alguns países tornaram-se mais e mais apertadas, decorrente dos propalados / comprovados malefícios do tabaco, levando a que, em alguns GP, os logos das ditas marcas tivessem de ser disfarçadas, com simbologias gráficas ou mesmo só com os seus contornos, mas sem que isso diminuísse o potencial de identificação de que se tratava da equipa A, B ou C.
A F1 foi, assim e até ao início do novo milénio, uma espécie de Coliseum, onde essas grandes marcas de tabaco se gladiavam pelos títulos de Campeões do Mundo. Os anos passaram e as empresas produtoras desse viciante hábito, mercê das crescentes limitações gráficas e de mensagem a que a F1 se veria obrigada, viram os seus produtos gradualmente substituídos por outras marcas, de diversificadas indústrias. Há hoje algumas que ainda continuam a contornar as dificuldades, embora encontrando cada vez mais entraves dos grandes decisoresdas questões inerentes à saúde do ser humano.
Olhando para a questão pela positiva, foram algumas dessas inesquecíveis associações que se (re)viram no Estoril Classics 2022, a começar pelos três Lotus ali presentes, todos neste atractivo preto e dourado da John Player Special, sem esquecer os dois Ligier com as cores da igualmente francesa Gitanes ou o Alfa Romeo com o vermelho e branco da Marboro. Se um dos March brilhava com o azul da Rothmans, o segundo exemplar apostava na cerveja Guinness, sector de bebidas que o Ensign também vestiu, com o lettering da Budweiser, sendo esta outra das indústrias que, por apelar ao consumo de bebidas com elevado teor de álcool, se vê a braços com cada vez maiores limitações de comunicação visual em eventos desportivos.
Noutro domínios, os Williams estavam vestidos com as também identificáveis cores da TAG (ou Techniques d’Avant Garde, holding privada composta por companhias de diferentes indústrias) e da Fly Saudia (linhas aéreas da Arábia Saudita), com um deles a ostentar a marca Leyland Vehicles, do sector automóvel, nas laterais, e o outro os produtos para homem Denim. O Arrows destacava-se pelo laranja das botas de ski Nórdica, o outro apostava e, mais sóbrio, um dos Surtees exibia o logo das célebres miniaturas da Matchbox. Os restantes monolugares tinham decorações mais simplistas, ora mantendo as cores da altura dos respectivos construtores, ora juntando um ou outro grafismo de menor impacto a nível da memória.
Os grandes nomes também regressaram a um palco onde já foram (in)felizes
Como se disse acima, foram 17 os monolugares de Fórmula 1 que vieram até ao Estoril, para esta 6ª edição do Classic GP – Pre-1986 F1, este ano com o alto patrocínio da Portugal Sotheby’s Realty, ostentando nas suas carroçarias duplas de nomes, uns perfeitamente identificáveis do mundo real da F1 de tempos já idos, outros que são mais sonantes nesta vertente clássica, sendo muitos deles coleccionadores e conduzidos pelos seus próprios proprietários.
Se alguns desses nomes da F1 de outrora até ainda podiam ter dado um saltinho ao Estoril, para assistir in loco à contenda, já outros estão impossibilitados de o fazer, por já não se encontrarem entre nós. Mas era como se estivessem, ali mesmo, como que protectores destes novos heróis da F1 clássica, ainda para mais porque muitos deles já somam umas quantas dezenas de velinhas nos bolos de aniversário.
O mais sonante de todos foi Nick Padmore, piloto de 45 anos que, aos comandos do Lotus 87B / Ford Cosworth DFV (#7) de 1981, venceu com facilidade ambas as corridas de 20 minutos do fim-de-semana. Versão aligeirada do Lotus 87, foi conduzido pelo campeão britânico Nigel Mansell, nomeadamente no GP de Kyalami de 1981, na África do Sul.
Montadas semelhantes – um Lotus 78 (#6), de 1977, e um Lotus 91 (#12), de 1982 – estiveram nas mãos de Marc Devis e de Steve Brooks, dois monolugares que, nas suas épocas, foram respectivamente conduzidos por Gunnar Nilsson (venceu o GP da Bélgica desse ano) e Elio de Angelis (vencedor do GP da Áustria).
Do lado da Williams, que se apresentou nesta última jornada do ano, integrada na iniciativa da Peter Auto, com duas viaturas – um FW07B (#27) e outro FW08C (#16), ambos de 1983 – o primeiro entregue a Martin O’Connell e o segundo a Mark Hazell, senhor de quem havemos de falar numa próxima edição da Garagem. Quem antes levaram estas máquinas aos mais diversos resultados foram Alan Jones e Keke Rosberg, incluindo vitórias, com o australiano a impor-se nos dois GP corridos nos EUA (Long Beach e Las Vegas) e o finlandês no sempre glamoroso GP Mónaco.
Do lado da March, os novos defensores das cores da marca britânica davam pelos nomes de Michel Baudoin, no chassis 821 (#15), de 1982, e Vicent Rivet no 811 (#71), de 1981, assumindo, respectivamente, o lugar dos originais Jochen Mass e Derek Daily, sem que qualquer deles registe resultados de relevo nos anais da F1, tendo ambos um 7º lugar como melhor resultado. Também dois eram os Ligier, um JS 11/15 (#69), de 1979, agora nas mãos de Mr John of B, depois de em 1980 ter andado com Didier Pironi, com ele vencendo o GP da Bélgica, juntando-se-lhe um JS-21 (#2), de 1983, quase 40 anos depois explorado por Soheil Ayari, viatura com que ou Jean-Pierre Jarrier ou Raul Boesel (não consegui confirmar) lidaram nessa época, também eles com um 7º lugar como melhor registo.
Já o isolado Theodore TR1 (#32), agora conduzido por Marco Fumagalli, foi em 1978 dividido entre Eddie Cheever, nas duas primeiras corridas da época, e Keke Rosberg, na restante temporada, onde o melhor que conseguiu foi um 10º lugar. Igualmente único no Estoril era o Alfa Romeo 182Bde Richard Hope, unidade que, segundo dizem, uma das poucas viaturas que Andrea de Cesaris não destruiu, e com que alcançou um 3º lugar no Mónaco em 1982. Já o Arrows A5 (#49) que Marc Surer guiou em 12 das 16 corridas de 1982 (5º lugar no GP do Canadá como melhor prestação) quase nem saiu das boxes do Estoril, para desalento de Neil Glover, o seu habitual condutor.
A categoria dos mais antigos F1 a rodar no Estoril Classics 2022 incluía dois Surtees, um T59 (#58) de Ewen Sergison, que Mike Hailwood (4º em Itália) e John Surtees (5º na Holanda) conduziram no Mundial de 1971, um ano antes do TS14 (#19) que é agora de Chistopher Perkins e que também fora de Surtees, a meias com Tim Schenken, sem registos dignos desse nome. O nome Schenken surgia, sim, na lateral do quase desconhecido Trojan T103 (#23) de Philippe Bonny, carro da época de 1974 e que, nesse ano, tem como melhores registos dois 10ºs lugares.
Quase a acabar, o Embassy Lola T370 (#99) de Jamie Constable ostentava orgulhosamente o nome de Graham Hill na carroçaria, piloto e – na altura – proprietário da equipa que fundou, chassis que levou ao 6º lugar no GP da Suécia de 1974. Para terminar, o Ensign N181 (#14), que em 1982 fora de Roberto Guerrero, rodava aqui com Laurent Fort e, se na altura o colombiano só terminou uma das 16 corridas que com ele iniciou, no Estoril o francês alcançou um 2º e um 4º lugares nas duas corridas. Nada mau para um monolugar quarentão!
Para rematar e a título de curiosidade, refiram-se as classificações finais deste Classic GP – Pre-1986 F1. Na Corrida 1 venceu Nick Padmore (Lotus 87B, 1981), batendo Laurent Fort (Ensign N181, 1982) por uns longos 38 segundos e Steve Brooks (Lotus 91, 1982), um dos seus companheiros de equipa, por quase 45 segundos. Seguiu-se o melhor da Classe A (F1 anteriores a 1978), Ewen Sergison (Surtees T59, 1971), suplantando Marc Devis (Lotus 78, 1977) por cerca de 3 segundos. Já na Corrida 2, se o vencedor foi o mesmo Padmore, o 2º foi Martin O’Connell (Williams FW07B, 1983), a meros 4,74 segundos, ele que nem conseguira alinhar na Corrida 1. Brooks repetiu o 3º lugar, com 40 segundos de atraso para o líder, batendo Fort por um 1 mero segundo de distância. Nos “A”, inverteram-se as posições, com Devis à frente se Sergison, nas 6ª e 7ª posições finais.
Como se disse no texto “Estoril Classics 2022: Sonhar bem acordado”, publicado há dias, este Classic GP – Pre-1986 F1 foi a derradeira jornada do calendário de 2022 que a Peter Auto reserva aos automóveis clássicos e à sua história, evento que reuniu cerca de 300 viaturas, em oito séries de treinos e corridas, divididos por três dias, que deliciaram o muito publico que encheu, em especial na F1, as bancadas e o paddock.
Haverá mais para contar sobre este evento, pelo que é só seguir a actualidade no portal da Garagem ou nas redes sociais, nomeadamente na sua página de Facebook, onde para além de histórias e curiosidades do mundo do motorsport se podem ler notícias e ensaios aos mais recentes modelos lançados no nosso mercado.
Fotos: Garagem/Jota Pê; Rui Reis Fotos; Peter Auto; Race Ready