Bandama, “O Rali Impossível”
Já ouviu falar do Rallye Bandama? Se é adepto do WRC e do seu já longo historial de meio século, a resposta será “sim”; se é apenas um fã recente daquele que é o maior campeonato de provas de estrada do planeta será um “talvez”; se só vem à Garagem porque gosta de ver as novidades que ensaiamos aposto num hipotético “não”. Independentemente do grupo em que se insira, o também conhecido como Rallye Côte d’Ivoire (Costa do Marfim) é uma prova africana que, em tempos, fez parte do calendário do WRC, adoptando, em múltiplas ocasiões, o nome do rio que atravessa o país.
Numa altura em que o WRC 2022 andou – literalmente – aos saltos nos troços finlandeses, regressemos ao passado para uma prova muito peculiar, o Rallye Bandama, singular evento que sempre se pautou por uma inigualável dureza, valendo-lhe o epíteto referido no título. Tudo porque à excepção da sua primeira edição, corrida no longínquo ano de 1969, que com uma estrutura competitiva mais tradicional (para a época), permitiu que se classificassem 43 das 58 viaturas inicialmente inscritas, nunca mais os deuses dos ralis africanos se mostraram tão clementes e permissivos para com os participantes, preferindo dizimar os pelotões até só restarem uns quantos sobreviventes, no máximo uns 15… uns 10, ou até 5… às vezes nem tanto… ou nenhum!
Pontuável de 1977 a 1992 para o WRC – o primeiro ano só para o Campeonato de Pilotos, depois, de 1978 a 1981 para ambos os Mundiais (Pilotos e Construtores) e depois, de 1982 a 1992, outra vez só para os Pilotos, bem como para várias edições da então Taça FIA para Pilotos de Carros de Grupo N, a jornada da Costa do Marfim foi, quase sempre, muito mal-amada pelas marcas e estruturas oficiais, nomeadamente pelos estragos decorrentes dessa dureza, algumas questionando-se por que raio a FISA (antecessora da actual FIA) a havia integrado no Mundial de Ralis, se até já havia o Safari!
Desenrolando-se ao longo de vários dias e estando a anos-luz da rival queniana em termos de imagem e de deslumbre das paisagens, a jornada de Abidjan assumiu uma espécie de orgulho louco para com a excelência do “vamos ver que provações e até onde aguentam”, mostrando-se temível para homens e máquinas, ao ponto de lhe começarem a referir-se-lhe como “Le Rallye Impossible”.
43 à partida… nenhum à chegada!
Foram muitas as edições em que apenas precisamos dos dedos de uma só mão para contar o número de carros que constam das suas classificações finais. Ou até nem isso, já que na sua história, a edição de 1972 teve 43 carros à partida e… nenhum à chegada!
Nem mesmo as valências de pilotos internacionais de créditos firmados e dos especialistas locais, inscritos com viaturas oficiais e semi-oficiais de estruturas como a Peugeot, Citroën, Renault, Chrysler e Datsun e Simca, entre outros nomes menos sonantes, foram suficientes para o que estava para vir, um percurso com cerca de 3.800 km – não se admire, pois houve edições maiores, com mais de 4.000 km – para o qual havia sido estabelecida uma impossível de cumprir média de 100 km/h, sem que se incorresse num acumular de penalizações por atraso na passagem pelos denominados Postos de Controlo Horário, vulgo CHC.
Segundo os registos da época, cumpridos que estavam os primeiros 600 km e já 18 concorrentes haviam abandonado; a meio do rali eram já só 11 os sobreviventes, para pouco depois passarem a ser apenas três: o britânico Tony Fall, num Peugeot 504 Ti, o queniano Shekhar Mehta e o local Emil Karam, ambos em Datsun 1600 SSS. Mais à frente também este último capitulava e, quem de 3 tira 1…!
Sozinhos na corrida para os apetecíveis 10 milhões de francos franceses, que estavam apalavrados para quem se sagrasse vencedor de tão difícil desafio, Fall e Mehta entregaram-se a uma batalha do tipo “ora agora lidero eu, ora agora passas tu”, até que o Datsun do segundo ficou atascado na lama. Demonstrando um claro desportivismo, Fall chegou-se à frente para tirar o adversário do lodo, tendo, a partir dessa altura, decidido juntar esforços, para melhor tentarem ultrapassar as dificuldades provocadas pela muita chuva que teimava em cair, fruto de uma inesperada tempestade que se abateu sobre a região, transformando o traçado em mares de lama.
Como se não bastasse, mais à frente, pouco antes de chegarem ao CHC seguinte, um problema mecânico colocava um ponto final nas pretensões do queniano, concluindo que dificilmente lá chegaria sem incorrer numa enorme penalização e na consequente desclassificação por excesso de tempo. Sabendo que ficaria fora de prova de qualquer forma, decidiu parar e, segundo as crónicas da época, tirar uma soneca, pelo menos até que a chuva passasse e pudesse minorar o problema. Outros tempos!
Quanto a Fall, uma vez sozinho em prova, tudo fez para chegar ao destino, alcançando o bendito do CHC onde… já não estava ninguém à sua espera!!! Acreditando que nenhuma equipa conseguiria sobreviver àquele dilúvio, os controladores haviam ido embora. Mas tal não demoveu o britânico, decidido a continuar a cumprir o percurso da prova, num esforço inglório que resultaria num abandono, após mais de 28 horas de condução non-stop (!!!) e quando ainda faltava cumprir cerca de 1.000 km do percurso definido originalmente!
Anulado como um todo, tornou-se, até à data e assim, num dos ralis sem uma dita classificação final. Diz-se, também, que o chorudo prémio monetário previsto para o vencedor ficaria guardado para a edição seguinte…!
Dos ceptros de Waldegaard e Röhrl…
Este peculiar rali africano é um dos três desse continente a já ter tido honras de pertencer ao WRC, o campeonato maior de provas de estrada do planeta. Os outros foram o já mencionado Safari, no Quénia, que desde 1953 assumiu múltiplas denominações (esteve no WRC de 1973 a 2002, regressando no ano passado ao convívio dos grandes), e o Rallye du Maroc, que esteve no WRC em três ocasiões (1973, 1975 e 1976).
Também já contribuiu para decidir os Campeões do Mundo de Ralis em duas épocas do WRC, em 1979, edição que apenas acabaram 8 carros, e de 1982 em que só 6 equipas atingiram o controlo final. No primeiro desses anos, o 2º lugar de Björn Waldegaard (Mercedes-Benz 450 SLC), ali obtido, atrás de Hannu Mikkola, foi suficiente para suplantar, por 1 mísero ponto, o seu companheiro de equipa na luta pelo ceptro de Pilotos. No ano seguinte o construtor germânico voltava a impor-se numa dobradinha que, dessa feita, teria o selo da vitória de Waldegaard, ficando no 2º lugar o argentino Jorge Recalde. Quanto à edição de 1982, nela destacou-se a vitória de Walter Röhrl (Opel Ascona 400), um feito que lhe garantiu o título, a uma jornada do fim do Mundial desse ano, edição em o alemão teve a forte oposição de Michèle Mouton (Audi Quattro), piloto francesa que alinhou à partida mesmo após saber que o pai havia falecido horas antes do início do rali, informação que apenas terá partilhado com o então responsável da equipa Audi Sport, no que parece ter sido uma espécie de autoterapia!
… a outras histórias rocambolescas!
Ainda no mundo da marca dos quatro anéis, outra edição houve, a de 1985, em que a equipa de Ingolstadt se viu a braços com uma (alegada) marosca que lhe poderia ter custado bastante caro. Dominador do rali até uma fase adiantada da prova, o Audi Sport Quattro de Michelle Mouton começou a evidenciar problemas muito sérios de motor, levando mesmo a que iniciasse uma das secções da prova a reboque do carro de apoio da equipa.
Desaparecendo do olhar dos curiosos a determinada parte do percurso, ambos os Audi surgiam depois, com o doente recuperado miraculosamente, por – segundo a explicação oficial da equipa – ter cedido ao primeiro a bomba de óleo. Nada de anormal aqui, só que, houve quem visse algo de estranho com os painéis de carroçaria do carro da piloto francesa, desconfiando-se que, afinal, poderia era ter havido uma troca de chassis. Afinal, o carro de apoio estaria em parte incerta. A situação foi investigada pelas entidades competentes, mas nada veio a ser oficialmente comprovado, ainda para mais porque Mouton viria depois a abandonar, por falta de resistência do material!
Mitsubishi 18 x Peugeot 6
Com 48 edições disputadas, a mais recente no final de Fevereiro último, o Rallye Bandama – Côte d’Ivoire foi-se, entretanto, adaptando às novas realidades dos ralis mundiais, assente num percurso total substancialmente mais reduzindo e passando, também, a adoptar Etapas e Especiais mais comuns, tal como hoje as conhecemos.
Em termos de sucessos na prova que, ao longo de muitos anos, serviu de palco de combate entre construtores franceses e japoneses, destaca-se a Mitsubishi, com nada menos do que 18 vitórias no seu pecúlio, de longe, a marca que mais vezes subiu ao lugar mais alto do pódio deste rali que, normalmente, se corria no final do ano, após a época das grandes chuvas. Atrás da marca dos três diamantes surgem a Peugeot, com 6 sucessos, e a Subaru, com 4.
Longe está a primeira vitória de todas, do Renault 8 Gordini do francês Marc Gérenthon no 1er Rallye Bandama 1969, impondo-se aos 43 concorrentes que então o terminaram, número não mais repetido na história do rali. Outra edição a recordar, também vencida pela marca francesa, é a de 1989, recordada no texto da Garagem “E um Grupo N venceu um rali do WRC”, em que um David – um pequeno Renault 5 GT Turbo do escalão mais baixo – bateu todos os Golias na corrida à vitória. E que suada vitória!
Já o sucesso mais recente foi obtido por Leroy Gomes, piloto da Zâmbia, com um Mitsubishi Lancer Evo IX, o melhor entre os 22 concorrentes que se apresentaram no Rallye Bandama – Côte d’Ivoire 2022. Fazendo jus ao seu historial de “O Rali Impossível”, desses 22 apenas 8 atingiram o final!
Fotos: Oficiais / Historique Rally Bandama (blog)